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Conto

Filed Under () by Mazé Mixo on segunda-feira, 15 de março de 2010

Posted at : 23:18

Começou numa quinta-feira.
A primeira, já muito velha, vivia num bosque esquecido na Romênia. Ninguém percebeu.
A segunda estava no pátio central de uma grande empresa canadense. E mesmo assim ninguém percebeu.
Uma a uma elas secaram, e assim ficaram. Mortas. De pé.
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A menina nem era tão menina assim. Já tinha conhecido o amor e a decepção. Já tinha quebrado o braço e escrito nomes por todo o gesso. Já tinha passado mal de tanto comer as mangas do seu quintal.
A pequena mangueira estava lá desde antes de se mudarem praquela casa apertada. Sua mãe havia tentado cortar a árvore pra ganhar espaço pra um novo varal, mas desistiu depois do choro desesperado da filha, que se apegara à planta como se fosse uma amiga.
A condição foi que a filha varresse as folhas caídas todo santo dia, e que não inventasse de se machucar com o balanço improvisado (promessa essa que não conseguiu cumprir). Sua primeira e melhor amiga foi aquela mangueira, que ouvia sobre os meninos da escola, que servia de sombra nos dias quentes, que fazia crescer as mangas mais deliciosas nos galhos mais baixos, só pra menina conseguir alcançar.
Cresciam juntas, cresciam rapidamente.
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Não havia pressa.
Os jornalistas só começaram a escrever quando o aumento das temperaturas já era constante e ininterrupto. Um grau a cada mês. Os ambientalistas fizeram piquetes, os profetas do apocalipse subiram em seus caixotes pregando a desgraça da humanidade, os industriais disseram que não tinham culpa.
Foi então que, cruzando dados, eles perceberam o que ocorria.
Florestas inteiras secaram. Pastos, campos e até manguezais secaram. Plantas de todos os tipos, por todo o planeta, sem qualquer motivo aparente, simplesmente secavam e morriam. De pé.
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A aula tinha sido cancelada, o que trazia um certo alívio. Ter de pensar em vestibular naquele calor era demais pra ela. Resolveu ir pra casa andando, cortando caminho pelo pequeno bosque que ficava entre sua casa e a escola. Conhecia o lugar muito bem, pois já tinha supostamente se deixado conduzir pra alguns daqueles cantos por um ou outro rapaz.

Sorria pensando nisso quando parou pra ver a grama amarelando diante de seus olhos. As goiabas dos pés próximos caíam, podres. Antes de chegar em casa, todo aquele bosque secara.Ela correu em disparada, com o coração apertado, temendo por sua mangueira. Aquela loucura noticiada na TV finalmente começava a acontecer por perto.
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Pois agora não havia retorno. Mesmo as sementes estocadas viravam pó, mesmo as mais bem cuidadas estufas não conseguiam reter a vida das plantas mais simples. Era como se todas tivessem sido envenenadas, ao mesmo tempo, por todo o planeta. Só as plantas.
As presidentes, primeiros-ministros e ditadores foram à televisão. Disseram que suas pátrias não precisavam temer, que haviam planos de emergência, que haviam estoques de comida, que tudo ficaria bem. Mentiram, como sempre.
Os homens que sempre viveram da terra choravam e rezavam à seus deuses. Os homens que sempre acreditaram não viver da terra choravam e rezavam à sua ciência. Mas a natureza não ouviu o choro de ninguém. Nem as orações.
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A menina já não saía de perto de sua árvore há alguns dias. Tinha medo que se virasse as costas sua mangueira secaria como todas as outras do bairro.
Primeiro foram suas amigas que foram lhe visitar. Depois os vizinhos, que nem intimidade tinham. Depois vieram os repórteres dos jornais locais junto com o prefeito, então finalmente começou a peregrinação.
Pessoas vieram de toda parte. Alguns queriam ver com os próprios olhos, outros pretendiam roubar uma manga, outros queriam cortar mudas, outros queriam rezar sob seus galhos. E por um tempo todos foram bem-vindos.
Ela dividiu as muitas frutas com quem pedia, e até deixou cortarem alguns galhos. Mas achava estranho mesmo era aquele povo todo fazendo fila pra chorar debaixo de sua árvore, pedindo compaixão e milagres.
Tudo isso durou poucos dias, até uma tarde mais quente que todas as outras tardes, quando alguém que disse ter esperado demais resolveu parar de esperar. Abriu caminho com uma pistola na mão, e exigiu mangas pra encher a sacola de supermercado que trazia consigo. Os policiais a postos tiveram de negociar a rendição do bandido e a entrega da sacola com as poucas mangas, naquela altura uma preciosa refém. O perigoso sequestrador foi preso no momento que despontava na esquina uma comitiva de grandes carretas brancas, que traziam homens brancos vestidos de branco.
Sua folhas continuavam a crescer, suas mangas continuavam mais doces nos galhos mais baixos, mas não se podia chegar perto dela. Havia agora uma grande tenda armada no pequeno quintal. Os homens disseram à menina que cuidariam bem da árvore, à sua mãe que aquela planta era propriedade pública, lhe deram um bom dinheiro, e as colocaram num hotel luxuoso enquanto faziam suas experiências.
Não conseguiram fazer com que as mudas vingassem, nem descobriram nada de especial naquela mangueira. A última árvore viva no planeta era uma simples mangueira de quintal.
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Sumiram os insetos que comiam frutas. Desapareceram os pequenos animais que comiam os insetos. As aves perderam seus ninhos e morreram de fome. O mar esquentou e dizimou os peixes. Geleiras derreteram e cidades foram inundadas. Os primeiros homens a morrer foram no caos dos próprios homens, depois muitos se afogaram nas águas, outros sucumbiram ao calor, e então finalmente começaram a perecer pela fome.Os ricos tinham pílulas, tinham estoques de ração e de comida enlatada, mas também não duraram muito tempo. A primeira extinção tinha sido a das plantas, e agora era de todo o resto.
A menina não sentiu dor nem fome. Chorou por dias, e quando finalmente conseguiu dormir não acordou mais. Ficou perdida no mundo dos sonhos, onde sua árvore lhe faria companhia pra sempre, e onde todas as outras plantas ainda eram verdes e davam frutas de todas as outras cores.
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Tudo terminou numa sexta-feira.
Mas não havia mais ninguém pra diferenciar aquele dia dos outros dias da semana.
Só havia no mundo uma árvore, uma grande mangueira, com seus frutos doces nos longos galhos que já não eram tão baixos. Por muito tempo ela ainda floresceu, até suas frutas não mais brotarem, e suas folhas começarem a cair. Até restar só uma.
Era uma noite fria quando a última folha caiu, e um vento a soprou pra longe. Então a pequena folha esperou amanhecer, abriu os olhos e saiu andando pra conhecer seu mundo.